O fim da dinastia Assad

O momento mais temido por um ditador pode estar se aproximando para o presidente sírio Bashar al-Assad. Com os sons da guerra, que nunca silenciaram por completo no país, voltando a se aproximar de Damasco, os dias da família Assad no comando da Síria podem estar chegando ao fim. 

Mas quais são os fatores que permitiram que a guerra reiniciasse com tanta força no país? E como pode o presidente Assad, grande parceiro de Irã, Rússia e Líbano, estar praticamente abandonado por todos os seus aliados neste momento?

Quem lidera a ofensiva?

Oficialmente, a ofensiva tem sido liderada pelo grupo rebelde Hayat Tahrir al Sham (HTS), fundado em 2017, e que tem como líder Abu Muhammad al Julani. Mas é aqui que as coisas já começam a ficar complicadas.

Oficialmente, “o HTS é um grupo rebelde que está lutando pela democracia na Síria, e tem como intuito o fim da ditadura Assad, que já dura mais de 50 anos“. Porém, na verdade, o HTS, assim como seu líder al Julani, é a Al Qaeda trabalhada no marketing para ser aceita como moderada. 

Na história recente, al Julani fez parte do Estado Islâmico no Iraque, e depois foi um dos líderes da Jabhat al Nusra, principal representante da Al Qaeda na Síria, a partir de 2012. Porém, através de um passe de mágica, todas as atrocidades que ele cometeu no passado já não importam mais. Agora, ele se apresenta como um homem mudado e afirma que irá respeitar as minorias sírias quando Assad não estiver mais no poder. 

Após o trabalho de “rebranding”, o HTS abandonou a bandeira preta e branca e a propaganda de morte ao ocidente; assim como não divulgou mais vídeos de decapitações e execuções de reféns, que se tornou marca registrada do ISIS e da al Nusra, que faziam desses atos produções hollywoodianas com o intuito de chocar e propagar terror nos infiéis (leia-se qualquer pessoa que não seja muçulmana e que não respeite a Sharia – lei islâmica radical).

Aparentemente, a mudança de bandeira e de discurso deu certo, e hoje o HTS conta com o apoio de países membros da OTAN, assim como de países árabes que querem o fim da Dinastia Assad. 

Novamente, porém, temos que ter cuidado com o que ouvimos. As fileiras do “moderado” HTS são compostas por centenas, se não milhares, de ex-combatentes do ISIS, que, ao serem dispersados do ISIS e da al Nusra, entre 2016 e 2017, se juntaram a vários grupos rebeldes, entre os inúmeros presentes na Síria. O grupo conta também com incontáveis soldados de outros países, que consideram o conflito na Síria uma preparação para uma Jihad em grande escala. 

Além deles, o Exército Nacional Sírio (ENS) se juntou à ofensiva, antigo FSA, que no início da guerra era apoiado por vários países do golfo, como Catar, Arábia Saudita e Jordânia, e que hoje são patrocinados majoritariamente pela Turquia (recebem armamento, treinamento e salário do governo turco).

Erdogan tem intenção de derrubar o regime sírio, mas talvez o objetivo principal do presidente turco seja obter o controle do país para, em seguida, perseguir os grupos curdos presentes no nordeste da Síria, e que lutam por um Curdistão independente, que além da Síria, abrange uma grande região do leste da Turquia, Iraque, Irã e Armênia.

Além do HTS e dos turcos, nessa guerra temos também os curdos, que são considerados grupos terroristas pela Turquia, porém são patrocinados e apoiados pelos Estados Unidos. Coincidentemente (ou não), ao nordeste da Síria, onde os curdos e os EUA têm controle, é onde estão os poços de petróleo do país!

Esse grupo luta principalmente contra a Turquia e o Estado Islâmico, porém, no cenário atual, tem enfrentado também as forças pró-Assad.

Os inimigos se multiplicam

Além dos grupos mencionados acima, que contam com uma ajuda velada (ou nem tanto) de vários países, a situação se complica ainda mais quando países importantes da região entram na guerra. 

Israel

É aqui que entra Israel no cenário. Neste momento, podemos apenas fazer algumas conjecturas, com base nas informações que conseguimos levantar, a respeito do papel de Israel na situação presente na Síria. Algumas informações levantadas apontam para fatores-chave que demonstram um papel israelense decisivo nesse avanço dos rebeldes contra o governo Assad. 

Em primeiro lugar, sabemos que Israel deseja uma mudança de governo na Síria, mas temos que ser cautelosos aqui, pois “mudança de governo” não é necessariamente a mesma coisa que “estabilidade e democracia“. Com a queda de Assad, Israel elimina a parceria Irã/ Síria/ Hezbollah, principal ameaça ao estado israelense.

Em segundo lugar, temos declarações de antigos membros do Mossad admitindo terem ajudado de diversas formas combatentes do ISIS que lutavam contra o governo sírio, em outras épocas do conflito. Podemos assumir que, no cenário atual, essa ajuda pode ainda estar em vigência.

Em terceiro lugar, não podemos desconsiderar a enorme coincidência de que o início da atual ofensiva rebelde tenha ocorrido justamente no dia em que também se inicia o cessar-fogo entre Israel e Hezbollah.

Com os ataques realizados recentemente por Israel contra o Hezbollah no Líbano e na Síria, que resultaram na destruição de quase toda a liderança e de muitos armamentos do grupo, devemos considerar seriamente também a hipótese de que a atual ofensiva já estava sendo planejada há muitos meses, dentro da guerra de Israel na Faixa de Gaza. Devemos considerar que os ataques israelenses, para enfraquecer o Hezbollah e as forças iranianas na Síria, serviram como preparação e abertura de caminho para a ofensiva do grupo rebelde Hayat Tahrir al Sham (HTS) contra o governo Assad.

Ucrânia

Podemos ainda especular, com base em informações, sobre a participação do serviço secreto ucraniano também como desestabilizador da Síria. 

A Rússia é um grande parceiro do governo sírio e, desde o início da guerra civil, apoiou o exército na luta contra os rebeldes. Porém, temos visto a Ucrânia tentando desestabilizar as forças russas em outros fronts, talvez para tentar obrigar Putin a mandar soldados a outros países, enfraquecendo assim suas forças na Ucrânia. 

Neste ano, tivemos evidências de ajuda ucraniana a rebeldes que combatem o Wagner Group no Sahel, e agora na Síria temos alguns boatos de que combatentes do HTS teriam recebido treinamento na Ucrânia, assim como ajuda de armamento e inteligência para realizar os ataques contra posições russas e sírias.

Assad foi abandonado por Putin?

A Rússia foi o principal parceiro do governo sírio desde o início da guerra, e graças a esse apoio, Bashar al Assad conseguiu se manter no poder até hoje. Mas aparentemente, por motivos que ainda não estão claros, Putin abandonou Assad. 

Informações não oficiais relatam que Assad teria solicitado ajuda militar à Rússia, que foi negada, com a justificativa de que Putin tem outras prioridades no momento, que não são a Síria. Sem essa ajuda, o destino de Assad praticamente é selado, pois mesmo que o Irã envie ajuda, não seria suficiente para conter a ofensiva rebelde. 

A Rússia mantém bases aéreas e portos importantes no país. Resta saber se esses locais serão conquistados pelos rebeldes ou se algum tipo de acordo será feito entre Rússia e HTS. Podemos levantar a hipótese de que Israel, Turquia e Rússia já podem ter feito algum acordo para a região, com o intuito de eliminar as forças iranianas no país.

Assad está se despedindo do poder

Parecia que o governo Assad iria resistir. Recentemente, vimos alguns países voltando a abrir embaixadas em Damasco. Assad havia inclusive voltado a fazer parte da Liga Árabe, da qual o haviam expulsado logo que a guerra iniciou. Tudo isso vinha dando um tom de normalidade ao país. Mas enquanto isso pelas suas costas vinha se desenhando esse cenário desolador. 

Com a ofensiva relâmpago, nem o mais otimista dos rebeldes acreditava que a tomada da Síria seria tão rápida. Isso impossibilitou que Assad solicitasse ajuda em tempo hábil para impedir os avanços rebeldes. 

Numa última tentativa de apoio, ele entrou em contato com Egito e Jordânia, que, assim como a Rússia, negaram o pedido de ajuda, tendo inclusive sugerido que Assad saísse do país e formasse um governo de oposição no exterior. 

Tal sugestão seria uma alternativa para o caso de o governo sírio perder o controle também sobre Damasco e Bashar Al-Assad ter que fugir da capital? É provável que isso ocorra no momento em que escrevo esse artigo ou nas próximas horas.

A opção de manter um governo de oposição no exterior seria também uma ótima opção aos turcos e norte-americanos no caso de os grupos rebeldes saírem de controle. Assim poderiam usar Assad como o verdadeiro líder sírio e apoiá-lo em uma retomada de poder.

Qual será o futuro da Síria?

Após a morte do presidente Khadafi e com a “independência” Líbia em 2011, o país permanece no limbo de conflitos entre as dezenas de grupos armados que na época estavam unidos para derrubar Khadafi e sua ditadura. Porém, todos os países que se diziam preocupados com o bem-estar do povo líbio e que se uniram para derrubar Khadafi desapareceram, deixando o país mergulhado em um conflito ainda pior e sem a mínima previsão de acabar.

Em alguns dias, poderemos ter um vislumbre de qual será o futuro da Síria e de Assad. É pouco provável que vejamos com Assad as cenas de tortura e execução que ocorreram com Khadafi, em 2011, na Líbia. Ao contrário do general líbio, embora praticamente isolado, Assad ainda pode buscar refúgio com algum dos seus parceiros. 

Mas quanto à Síria como país, podemos prever um futuro sombrio, com vários grupos lutando por poder. E no vazio que surgirá em regiões isoladas do país, poderemos ver o ressurgimento do Estado Islâmico ou de grupos ainda mais extremistas. Eventualmente, como a história recente tem nos mostrado, esses grupos acabam em disputas locais e passam a atacar seus outrora parceiros.

Vale ressaltar a fala do próprio al Julani, em entrevista recente à CNN, em que ele afirma que “o HTS é o grupo formado para combater o governo sírio, mas que pode ser dissolvido a qualquer momento e outros grupos se formarem”. Seria isso uma ameaça prévia aos apoiadores do grupo?

Por enquanto, forças sírias continuam resistindo em Homs e provavelmente defenderão Damasco, mas sem contar com os apoios russo e iraniano, é apenas uma questão de dias para que os rebeldes controlem o país e mostrem ao mundo sua verdadeira face!

Artigo publicado no site Perspectiva News

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