O que é terrorismo na perspectiva global e qual o papel de al-Julani?

O descongelamento do conflito na Síria trouxe à tona diversos atores nas manchetes e nos debates globais. Termos como terroristas, jihadistas, rebeldes, ISIS e al-Qaeda são frequentemente utilizados de forma ampla e sem restrições. É imperativo introduzir no debate as definições desses conceitos, ou ao menos promover um esforço para compreender as variadas conceituações dentro de contextos específicos. Assim, seremos capazes de realizar análises de maneira mais criteriosa.

A definição de terrorismo: uma perspectiva internacional

Como um fenômeno complexo e multifacetado, o terrorismo caracteriza-se pelo uso deliberado da violência ou da ameaça de violência contra alvos civis, governamentais ou militares, com o objetivo de alcançar metas políticas, religiosas, ideológicas ou econômicas. Ele é definido, acima de tudo, por sua intenção de criar medo, desestabilizar sociedades e forçar mudanças políticas por meio da intimidação e do choque.


Uma característica fundamental do terrorismo é sua natureza assimétrica: ele geralmente envolve atores não estatais enfrentando Estados, mas também pode ser praticado por governos contra sua própria população, em casos de repressão política, o que é conhecido como terrorismo de Estado. Além disso, o terrorismo se diferencia de outros tipos de violência pelo seu propósito estratégico, que vai além do dano físico imediato, visando amplificar seu impacto psicológico sobre uma audiência maior do que os alvos diretos.

A ambiguidade da definição

Embora a essência do terrorismo esteja no uso sistemático da violência para fins políticos, não existe uma definição universalmente aceita. Isso ocorre porque o conceito está profundamente enraizado em contextos históricos, políticos e culturais. Um exemplo clássico é o aforismo “um terrorista para uns é um herói da resistência para outros“, que ilustra como os rótulos podem variar conforme a perspectiva ideológica.

A ONU, apesar de décadas de esforços, ainda não chegou a um consenso definitivo sobre o que constitui terrorismo, devido a discordâncias entre os Estados-membros. Para muitos países ocidentais, atos terroristas são amplamente associados a grupos jihadistas e insurgências armadas. Em contraste, países do Sul Global, frequentemente enfrentando movimentos de libertação nacional, tendem a evitar caracterizar como terrorismo ações voltadas contra forças coloniais ou ocupantes estrangeiros.

Elementos Comuns ao Terrorismo

Mesmo com variações conceituais, existem elementos que geralmente definem o terrorismo em estudos acadêmicos e políticas governamentais:

  1. Uso da violência: atos de força física que causam morte, destruição ou intimidação.
  2. Motivação política, ideológica ou religiosa: o objetivo não é puramente criminal, mas busca uma transformação estrutural na sociedade ou no governo.
  3. Alvos civis ou não-combatentes: as vítimas diretas costumam ser escolhidas para maximizar o impacto psicológico, ao invés de buscar um ganho militar direto.
  4. Intenção de causar medo generalizado: o impacto vai além do ato em si, atingindo uma audiência mais ampla para influenciar comportamentos ou decisões políticas.


Tipos de terrorismo

O terrorismo pode se manifestar de diferentes formas:

  • Terrorismo internacional: envolve atores ou organizações que operam em mais de um país, como Al-Qaeda e Estado Islâmico.
  • Terrorismo doméstico: restringe-se às fronteiras de um Estado, como é o caso de grupos separatistas ou supremacistas.
  • Ciberterrorismo: uso da tecnologia para realizar ataques virtuais contra infraestruturas críticas.
  • Terrorismo de Estado: violência patrocinada por governos, como tortura e desaparecimentos forçados.

Contexto histórico e moderno

Historicamente, o terrorismo remonta à Antiguidade, como as práticas dos sicários judeus contra a ocupação romana. Contudo, o termo ganhou relevância moderna durante a Revolução Francesa, onde foi associado ao uso do terror pelo Estado. Já no século XX, movimentos de libertação, como os do Oriente Médio e da África, redefiniram o terrorismo em relação ao colonialismo e ao imperialismo.

Nos dias de hoje, o terrorismo tornou-se uma ameaça transnacional, exacerbada pela globalização e pelo acesso a novas tecnologias, como drones e redes sociais, que permitem aos grupos terroristas ampliar seu alcance e radicalizar indivíduos remotamente, em países e continentes diferentes.

O termo “terrorismo” é muito amplo e depende de uma análise de diversos fatores. Abaixo listamos o que alguns países consideram terrorismo. Sempre lembrando que os grupos terroristas são adicionados e removidos de listas negras levando também em consideração interesses regionais, o que abre ainda mais possibilidades de discussão sobre se determinados grupos são terroristas ou não.

  1. Estados Unidos: o governo dos EUA define terrorismo como “o uso premeditado de violência, geralmente contra alvos não combatentes, para influenciar uma população ou governo”. A designação de grupos como terroristas pelos EUA tem implicado sanções financeiras e operações militares, como é o caso do grupo rebelde sírio que depôs o Bashar al-Assad, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS).
  2. União Europeia: a União Europeia adota uma abordagem semelhante, mas com foco em ameaças à segurança coletiva de seus Estados-membros. A UE lista o HTS, por exemplo, como uma organização terrorista e aplica medidas que visam combater o financiamento do grupo e impedir sua expansão.
  3. Rússia: a Rússia define terrorismo de forma ampla, abrangendo qualquer grupo que ameace a estabilidade do Estado ou apoie insurgências armadas contra governos aliados, como o regime de Bashar al-Assad. O governo russo também considera o HTS uma organização terrorista e tem conduzido ataques aéreos intensos contra suas posições em Idlib. 
  4. Nações Unidas: a ONU não possui uma definição formal de terrorismo devido à falta de consenso entre seus membros. No entanto, classifica atividades como sequestros, atentados suicidas e alvos civis como atos terroristas em diversas resoluções.
  5. Países muçulmanos: em muitos países muçulmanos, o termo “terrorismo” é frequentemente politizado. Enquanto alguns Estados, como a Arábia Saudita, condenam grupos como o HTS, outros evitam posições claras, devido à complexidade das alianças regionais e ao papel de tais grupos em conflitos locais.
  6. Regiões africanas: na África, o terrorismo está frequentemente associado a grupos como Boko Haram, Al-Shabaab e filiais do Estado Islâmico. Esses grupos operam em contextos de instabilidade política, pobreza extrema e fragilidade estatal, utilizando táticas como sequestros em massa, ataques suicidas e destruição de infraestruturas essenciais. A resposta ao terrorismo na África varia entre operações militares lideradas por potências internacionais e esforços regionais de combate, como a Força-Tarefa Conjunta Multinacional contra o Boko Haram.

Após essa breve introdução sobre terrorismo, gostaria de tratar agora de um personagem controverso, que entra para a história como o líder rebelde que não apenas provocou a fuga do ditador Bashar al-Assad, como derrubou a dinastia Assad do poder na Síria, após mais de 50 anos. Abu Mohammad al-Julani tentará reconstruir uma nova ordem para um país devastado pela guerra civil.

A biografia de Abu Mohammad al-Julani

Abu Mohammad al-Julani, nascido Ahmad Hussein al-Shara, é uma das figuras mais influentes e polêmicas no cenário do terrorismo contemporâneo. Nascido em 1982 na Arábia Saudita, al-Julani se destacou inicialmente como combatente jihadista durante a invasão norte-americana ao Iraque, que iniciou em 2003. Durante esse período, ele se uniu ao grupo liderado por Abu Musab al-Zarqawi, que posteriormente se tornou o Estado Islâmico no Iraque (EII). 

Al-Julani desempenhou um papel crucial na organização de atentados suicidas e na coordenação de operações militares contra as forças da coalizão liderada pelos Estados Unidos e o governo iraquiano.


Durante sua permanência no Iraque, al-Julani foi preso pelo exército norte-americano, tendo passado pelas prisões de Abu Graib, Camp Bucca, Camp Cropper e al-Tajji. Al Julani ficou aproximadamente 5 anos em prisões norte-americanas, onde se acredita que ele tenha conhecido Abu Bakr al Baghdadi, que anos depois se tornaria líder do Estado Islâmico no Iraque e na Síria.

Foi no Iraque que al-Julani refinou suas habilidades em táticas de guerrilha, propaganda e recrutamento, muitas vezes visando comunidades xiitas para fomentar divisões sectárias. Essa experiência serviu de base para sua atuação posterior na Síria, para onde retornou em 2011, com o objetivo de expandir a jihad em meio ao caos da guerra civil. Fundador da Frente al-Nusra, o braço oficial da Al-Qaeda no conflito sírio, ele rapidamente se tornou conhecido por sua capacidade de liderar e executar estratégias militares eficazes, além de consolidar territórios sob controle jihadista.

Sob sua liderança, a Frente al-Nusra não apenas perpetrou ataques suicidas devastadores contra alvos militares e civis, mas também estabeleceu um sistema de governança em áreas conquistadas, muitas vezes impondo interpretações extremas da sharia. Em 2016, al-Julani anunciou a formação do Jabhet Fateh al Sham, em uma tentativa de se reposicionar como um movimento local menos extremista e ganhar maior aceitação e apoio, tanto moral quanto financeiro, entre as populações sírias e no cenário internacional. Neste momento ele não declara e nem rechaça a aliança com a Al-Qaeda, o que faz com que o mundo passe a vê-lo com olhos de rebelde moderado.

Menos de um ano depois, dissolveu o JFS e formou o Hayat Tahrir al Sham. Contudo, o HTS continuou sendo acusado de graves violações dos direitos humanos, incluindo execuções extrajudiciais, repressão de opositores e exploração das populações civis.

Atualmente, al-Julani permanece como líder do HTS e do novo governo sírio após a deposição de Bashar al Assad, e segue sendo uma figura controversa no cenário global, buscando equilibrar sua imagem como sendo um ator moderado em meio aos grupos extremistas que estão presentes.

Reflexões finais

A história de Abu Mohammad al-Julani e do HTS, assim como de outros grupos e seus líderes que já alcançaram a notoriedade, ilustra a complexidade do terrorismo no século XXI, onde a linha entre insurgência local e jihadismo global muitas vezes se confunde. Enquanto diferentes países oferecem definições variadas de terrorismo, o impacto das atividades de grupos como o HTS é universalmente devastador, afetando milhões de civis e desestabilizando regiões inteiras.

Uma abordagem mais unificada para definir e principalmente combater o terrorismo é essencial, mas continua sendo um desafio diante dos interesses divergentes entre as potências globais. Al-Julani permanece uma figura central nesse cenário, simbolizando tanto a persistência do extremismo quanto as dificuldades em lidar com a sua dinâmica multifacetada.

Artigo publicado em Perspectiva News

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